segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Hoje que tudo me falta, como se fosse o chão

Hoje que tudo me falta, como se fosse o chão,
Que me conheço atrozmente, que toda a literatura
Que uso de mim para mim, para ter consciência de mim,
Caiu, como o papel que embrulhou um rebuçado mau —
Hoje tenho uma alma parecida com a morte dos nervos
Necrose da alma,
Apodrecimento dos sentidos.
Tudo quanto tenho feito conheço-o claramente: é nada.
Tudo quanto sonhei, podia tê-lo sonhado o moço de fretes.
Tudo quanto amei, se hoje me lembro que o amei, morreu há muito.
Ó Paraíso Perdido da minha infância burguesa,
Meu Éden agasalhando o chá nocturno,
Minha colcha limpa de menino!
O Destino acabou-me como a um manuscrito interrompido.
Nem altos nem baixos — consciência de nem sequer a ter...
Papelotes da velha solteira — toda a minha vida.
Tenho uma náusea do estômago nos pulmões.
Custa-me a respirar para sustentar a alma.
Tenho uma quantidade de doenças tristes nas juntas da vontade.
Minha grinalda de poeta — eras de flores de papel,
A tua imortalidade presumida era o não teres vida.
Minha coroa de louros de poeta — sonhada petrarquicamente,
Sem capotinho mas com fama,
Sem dados mas com Deus —
Tabuleta [de] vinho falsificado na última taberna da esquina!

Álvaro de Campos


9-3-1930

Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.)
Lisboa: Estampa, 1993. - 118.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Imo






Cerca de grandes muros quem te sonhas.
Depois, onde é visível o jardim
Através do portão de grade dada,
Põe quantas flores são as mais risonhas,
Para que te conheçam só assim.
Onde ninguém o vir não ponhas nada.

Faze canteiros como os que outros têm,
Onde os olhares possam entrever
O teu jardim com lho vais mostrar.
Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém,
Deixa as flores que vêm do chão crescer
E deixa as ervas naturais medrar.

Faze de ti um duplo ser guardado;
E que ninguém, que veja e fite, possa
Saber mais que um jardim de quem tu és -
Um jardim ostensivo e reservado,
Por trás do qual a flor nativa roça
A erva tão pobre que nem tu a vês... 



Fernando Pessoa, in 'Cancioneiro'

segunda-feira, 3 de março de 2014

Nuvens

No dia triste o meu coração mais triste que o dia...
Obrigações morais e civis?
Complexidade de deveres, de consequências?
Não, nada...
O dia triste, a pouca vontade para tudo...
Nada...

Outros viajam (também viajei), outros estão ao sol
(Também estive ao sol, ou supus que estive),
Todos têm razão, ou vida, ou ignorância simétrica,
Vaidade, alegria e sociabilidade,
E emigram para voltar, ou para não voltar,
Em navios que os transportam simplesmente.
Não sentem o que há de morte em toda a partida,
De mistério em toda a chegada,
De horrível em todo o novo...

Não sentem: por isso são deputados e financeiros,
Dançam e são empregados no comércio,
Vão a todos os teatros e conhecem gente...
Não sentem: para que haveriam de sentir?
Gado vestido dos currais dos Deuses,
Deixá-lo passar engrinaldado para o sacrifício
Sob o sol, alacre, vivo, contente de sentir-se...
Deixai-o passar, mas ai, vou com ele sem grinalda
Para o mesmo destino!
Vou com ele sem o sol que sinto, sem a vida que tenho,
Vou com ele sem desconhecer...

No dia triste o meu coração mais triste que o dia...
No dia triste todos os dias...
No dia tão triste...

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Poema errante

Queria escrever um poema
que não dissesse nada.
Nada nele seria informação
aos olhos inquisidores da razão.
Meus versos seriam feitos de silêncio,
desses que só o coração é capaz de ouvir.
Sem léxicos complexos de erudição,
sem aforismos lucubratórios ,
sem o peso das pseudoverdades
que fazem do cérebro um deus.
Minhas palavras não seriam palavras
e meus significados, apenas cores,
como são os amores e as dores.

Nada a dizer,
mas a sentir sem assentir,
apenas por viver e querer
nada além do não querer.
Um olhar de amanhecer
às mais pequeninas estrelas
aconchegadas ao céu das emoções.

Queria que meus versos falassem
a língua dos amantes felizes
das crianças alegres
das mães que acalentam com o maior carinho do mundo.
Queria não ter que escrever
para tentar dizer o indizível.

Mas assim, mesmo assim,
queria que no fim, de tudo
ao pouco que me cabe, quem sabe,
deixar os versos que levem adiante
essa ternura ululante que não se detém
e dança comigo, errante e esperançosa,
em cada lacuna do meu pensar.

JPJ

domingo, 26 de maio de 2013

Descendo

Fui olhar as estrelas
e o destino me constipou.
Sem dó nem piedade
o que era raro, partiu.
O brilho, esvaiu.
Fiquei aqui sozinho,
sonhando que estava desperto
naquela noite límpida de sono,
naquele desejo de acordar
cada sonho que não sonhei.

Vejo apenas o que não é para ser visto
ou sentido. Que importa?
Sentir nas sombras ou não sentir,
dormir, apenas  − já é tarde.

Tempo é para a morte
a sorte que nunca tive,
se morresse agora e partisse
talvez o sonho me deixasse
ou talvez eu não existisse
ou nada disso que julguei real
não me deixasse partir sozinho.

A vida é uma grande ilusão.

Pudera nascer novamente
para olhar essa certeza desde o princípio.
Não pude, não quis e não soube,
quando o sonho nasceu,
arrancá-lo como erva daninha.
Deixei viver a realidade
e acreditei sentir quando estava a sonhar
e a pensar, em cada desejo,
como se fosse parte do meu viver.

Hoje, vivo apenas para morrer
um pouco a cada dia,
um sonho a cada dia,
e fazer crescer essa certeza mórbida
que no medo, no receio, e na dor,
deixa em mim apenas o nada
preso a esse coração gelado.

JPJ

terça-feira, 14 de maio de 2013

Apenas o nada















NADA SOU, nada posso, nada sigo.
Trago, por ilusão, meu ser comigo.
Não compreendo compreender, nem sei
Se hei-de ser, sendo nada, o que serei.

Fora disto, que é nada, sob o azul
Do largo céu um vento vão do sul
Acorda-me e estremece no verdor.
Ter razão, ter vitória, ter amor.

Murcharam na haste morta da ilusão.
Sonhar é nada, e não saber é vão.
Dorme na sombra, incerto coração.

Fernando Pessoa
1/1923


quinta-feira, 11 de abril de 2013

Viagens

Pudera que o mundo todo fosse tão vasto como um grão de areia
e que o meu coração nunca o soubesse.
A cada dia, uma nova história,
que contaria a saga de flores abraçando raios de sol
e entardeceres dourados e amigos queridos
e estrelas cintilantes ao alcance das mãos.
Tudo estaria tão junto, tão dentro, tão certo
que distância e saudade não existiriam no meu dicionário.
Acordaria apenas para tornar a sonhar
e dormiria as noites ouvindo o silêncio da razão.

Mas essa certeza,
mas esse ranço desarticulado do pensamento,
não me deixa ver o que tem por trás do firmamento.

Pudera que a vida apenas seguisse
longe da realidade que veste esse coração de púrpura serenidade.
E isso, na tarde infinita, já me bastaria.


Lone Cypress - Monterey, California